Desata-me

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Assassinos de pés

Há um par de séculos, Li Yu-chen inventou uma China ao Contrário. Em seu romance Flores do espelho havia um país das mulheres, onde elas mandavam.

Na ficção, elas eram eles; e eles, elas. Os homens, condenados a satisfazer as mulheres, eram obrigados às mais diversas servidões. Entre outras humilhações, tinham de aceitar que seus pés fossem atrofiados.

Ninguém levou a sério essa possibilidade impossível. E os homens continuaram amassando os pés das mulheres até transformá-los em alguma coisa parecida a patas de cabra.

Durante mais de mil anos, até bem avançado o século XX, as normas de beleza proibiram que o pé feminino crescesse. Na China foi escrita, no século IX, a primeira versão da gata Borralheira, onde ganhou forma literária a obsessão masculina pelo pé feminino diminuto; e ao mesmo tempo, anos mais, anos menos, se impôs o costume de vendar, desde a infância, os pés das filhas.

E não apenas por um ideal estético. Além de tudo, os pés atados atavam: eram um escudo da virtude. Impedindo que as mulheres se movessem livremente, evitavam que uma escapadela indecente qualquer pudesse pôr em perigo a honra da família.

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[China, 1999]

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Contrabandistas de palavras

Os pés de Yang Huanyi haviam sido atrofiados desde a infância. Aos tombos, caminhou pela vida. Morreu no outono de 2004, quando estava a ponto de fazer um século de vida.

Era a última conhecedora do Nushu, a linguagem secreta das mulheres chinesas.

Esse código feminino vinha de tempos antigos. Expulsas do idioma dos homens, do idioma masculino, que elas não podiam escrever, tinham fundado seu próprio idioma, clandestino, proibido aos homens. Nascidas para ser analfabetas, tinham inventado seu próprio alfabeto, feito de sinais que simulavam ser adornos e eram indecifráveis aos olhos de seus amos.

As mulheres desenhavam suas palavras em roupas e leques. As mãos que as bordavam não eram livres. As palavras, sim.

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redemb

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Eduardo Galeano, Espelhos

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